Conheça história da mulher que evitou que tragédia radioativa em Goiás fosse ainda pior Descrita por quem a conhecia como uma pessoa que vivia pela família, Maria Gabriela Ferreira entrou para a história de Goiás por um gesto que mudou o rumo do maior acidente radiológico já registrado no mundo fora de uma usina nuclear, o acidente com césio-137. Em setembro de 1987, quando Goiânia ainda desconhecia a origem de uma série de adoecimentos, ela foi a primeira pessoa a desconfiar que um objeto encontrado no ferro-velho da família poderia estar ligado aos sintomas que afetavam parentes, vizinhos e até animais de estimação. ✅ Clique aqui e siga o perfil do g1 Goiás no WhatsApp. A atitude, que foi tomada quase sem orientação e movida pela intuição e pela preocupação com quem estava ao seu redor, impediu que o material radioativo, o césio-137, se espalhasse ainda mais pela cidade. Maria Gabriela morreu pouco mais de um mês depois, aos 37 anos, vítima da mesma contaminação que ajudou a revelar. No mesmo dia, sua sobrinha, Leide das Neves, também faleceu em decorrência do seu contato direto com o material radioativo. Mais tarde, seria lembrada por especialistas e sobreviventes como peça-chave para que o acidente não tivesse proporções ainda maiores. LEIA TAMBÉM: Operação mira advogados, médico e engenheiro suspeitos de golpe milionário com fraudes em benefícios do Césio-137 FUI LAVADO COMO UMA KOMBI: Vítimas visitam locais do acidente com o césio-137 e relembram constrangimentos RELEMBRE: Césio 137: maior acidente radiológico da história aconteceu em Goiás e afetou mais de mil pessoas; relembre Após 30 anos, vítimas do acidente com césio-137 dizem sofrer com a falta de apoios médico e financeiro, em Goiânia Quem era Maria Gabriela Maria Gabriela morreu em outubro de 1987, quase um mês depois de ter contato com o césio-137, em Goiânia Reprodução/TV Anhanguera Antes de ser associada ao episódio que marcaria sua vida, Maria Gabriela era descrita pela família como alegre, extrovertida e trabalhadora. Casada com Devair Alves Ferreira, ela ajudava no dia a dia do ferro-velho da família, que funcionava no Setor Aeroporto. O casal tinha uma rotina simples até que, no início de setembro de 1987, um equipamento abandonado em uma antiga clínica de radioterapia chegou ao local. Sem saber do que se tratava, catadores desmontaram o aparelho e venderam peças para o ferro-velho. Dentro dele havia uma cápsula que emitia um pó brilhante, algo que despertou curiosidade e levou várias pessoas a tocá-lo Nos dias seguintes, Maria Gabriela, o marido e outras pessoas próximas, como familiares e vizinhos, começaram a apresentar sintomas como náuseas, vômitos, irritações na pele e fraqueza. A decisão que mudou tudo Foi Maria Gabriela quem percebeu que o material recém-chegado poderia estar ligado às doenças. Primeiro, tentou afastá-lo da própria casa, enviando-o para um centro de recicláveis junto com outros materiais. Mas, quando percebeu que os sintomas continuavam, decidiu voltar ao local, resgatar a peça e procurar ajuda. A morte repentina de um passarinho da família, poucas horas depois de o objeto entrar na casa, reforçou a desconfiança de que algo estava errado. Além disso, pessoas ao seu redor continuaram adoecendo, como conta Odesson Alves Ferreira, irmão de Devair, em entrevista à repórter Letícia Graziely, do g1 Goiás. “O produto chegou no dia 18 de setembro e as pessoas começaram a adoecer. Um pássaro de gaiola que o casal tinha morreu na mesma noite que a peça adentrou a residência. Ligando uma coisa à outra, uma vizinha também começou a comentar sobre a possibilidade de aquilo ser o causador. No dia 26, a Maria Gabriela mandou aquilo junto com outros recicláveis para um depósito, mas, como as pessoas ao seu redor continuavam adoecendo, no dia 28, ela e um funcionário foram ao depósito, resgataram a peça e levaram para a Vigilância Sanitária. Dois dias depois, vieram a saber ser o césio-137”, relembrou o cunhado. No dia 28 de setembro, ela e um funcionário voltaram ao depósito onde o objeto havia sido deixado, recolheram o material e o transportaram de ônibus até a Vigilância Sanitária de Goiânia, sem saber que carregavam material radioativo. A iniciativa antecipou em dias a descoberta científica da contaminação, que só seria confirmada após medições feitas no prédio do órgão de saúde. Segundo especialistas, se ela não tivesse levado o material até ali, o diagnóstico demoraria mais e a radiação teria se espalhado por mais regiões, afetando ainda mais pessoas. A investigação da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) mostrou que, antes da descoberta, vítimas circularam normalmente por diferentes bairros e até chegaram a viajar, multiplicando os pontos de contaminação. Milhares de pessoas foram avaliadas na época do acidente com césio-137 e 129 apresentaram radiação no corpo Goiânia Goiás Reprodução/Cara A tragédia O acidente radiológico começou em 13 de setembro de 1987, quando dois catadores, Roberto dos Santos e Wagner Mota, encontraram o aparelho de radioterapia abandonado e removeram a cápsula de césio-137, que emitia um brilho azul no escuro. A aparência curiosa fez com que várias pessoas manuseassem o pó, sem imaginar os riscos. “As pessoas sentiram náuseas, dor de cabeça, coceiras pelo corpo, escurecimento de pele, vômitos, diarreia. O Devair sentia os dentes amolecidos na gengiva, não sentia cheiro, o paladar não diferenciava o sal do açúcar. Naquela semana não senti nada, mas no oitavo dia minhas mãos estavam irreconhecíveis, inchadas, vermelhas e com muita coceira”, informou Odesson. No total, quatro pessoas morreram oficialmente devido à exposição direta: Maria Gabriela, Leide das Neves, Israel Batista dos Santos e Admilson Alves de Souza. Outras mais de mil pessoas apresentaram sequelas. Além disso, de acordo com a Associação das Vítimas do Césio-137, mais de cem pessoas morreram por causa do acidente, devido a câncer e outros problemas. Consequências A descontaminação produziu cerca de 6 mil toneladas de rejeitos, incluindo roupas, utensílios domésticos e materiais de construção, que hoje estão armazenados em Abadia de Goiás. Após a identificação do material radioativo, equipes de saúde montaram um mutirão de triagem no Estádio Olímpico, onde mais de 100 mil pessoas foram examinadas. Locais inteiros foram isolados, casas demolidas e móveis destruídos. A população afetada conviveu por anos com preconceito, causado pelo medo e pela falta de informação. O acidente também provocou mudanças nacionais no controle de equipamentos com fontes radioativas, obrigando fabricantes a recolherem as cápsulas ao final da vida útil, de acordo com a CNEN. Depósito onde estão enterrados os rejeitos do césio-137, em Abadia de Goiás Sílvio Túlio/G1 Legado e memória Mesmo sem ter testemunhado o impacto de suas decisões, Maria Gabriela deixou um legado reconhecido por especialistas em radioproteção: ela foi a pessoa que permitiu que a tragédia fosse percebida a tempo de conter danos ainda maiores. Hoje, mais de 30 anos depois, o nível de radiação nas áreas afetadas está dentro da normalidade. O acompanhamento dos radioacidentados e descendentes (filhos, netos e bisnetos) segue sendo feito pelo Centro de Assistência ao Radioacidentado (C.A.R.A.), que monitora efeitos tardios da exposição. Em 2024, segundo o órgão, 1.360 pessoas estavam cadastradas. Pessoas em estado grave pela contaminação com o césio-137 partem de Goiás para o Rio de Janeiro Lorisvaldo de Paula/O Popular A história de Maria Gabriela, porém, continua a simbolizar o papel da intuição, da responsabilidade e do senso de cuidado em meio à desinformação e ao caos que marcaram aquele setembro. Uma mulher comum que agiu movida pelo instinto de proteger a família e os vizinhos, e que acabou prevenindo proporções muito maiores de um acidente que mudou a história de um estado. 📱 Veja outras notícias da região no g1 Goiás. VÍDEOS: últimas notícias de Goiás
Césio-137: Conheça história da mulher que evitou que tragédia radioativa em Goiás fosse ainda maior
Escrito em 07/12/2025
Conheça história da mulher que evitou que tragédia radioativa em Goiás fosse ainda pior Descrita por quem a conhecia como uma pessoa que vivia pela família, Maria Gabriela Ferreira entrou para a história de Goiás por um gesto que mudou o rumo do maior acidente radiológico já registrado no mundo fora de uma usina nuclear, o acidente com césio-137. Em setembro de 1987, quando Goiânia ainda desconhecia a origem de uma série de adoecimentos, ela foi a primeira pessoa a desconfiar que um objeto encontrado no ferro-velho da família poderia estar ligado aos sintomas que afetavam parentes, vizinhos e até animais de estimação. ✅ Clique aqui e siga o perfil do g1 Goiás no WhatsApp. A atitude, que foi tomada quase sem orientação e movida pela intuição e pela preocupação com quem estava ao seu redor, impediu que o material radioativo, o césio-137, se espalhasse ainda mais pela cidade. Maria Gabriela morreu pouco mais de um mês depois, aos 37 anos, vítima da mesma contaminação que ajudou a revelar. No mesmo dia, sua sobrinha, Leide das Neves, também faleceu em decorrência do seu contato direto com o material radioativo. Mais tarde, seria lembrada por especialistas e sobreviventes como peça-chave para que o acidente não tivesse proporções ainda maiores. LEIA TAMBÉM: Operação mira advogados, médico e engenheiro suspeitos de golpe milionário com fraudes em benefícios do Césio-137 FUI LAVADO COMO UMA KOMBI: Vítimas visitam locais do acidente com o césio-137 e relembram constrangimentos RELEMBRE: Césio 137: maior acidente radiológico da história aconteceu em Goiás e afetou mais de mil pessoas; relembre Após 30 anos, vítimas do acidente com césio-137 dizem sofrer com a falta de apoios médico e financeiro, em Goiânia Quem era Maria Gabriela Maria Gabriela morreu em outubro de 1987, quase um mês depois de ter contato com o césio-137, em Goiânia Reprodução/TV Anhanguera Antes de ser associada ao episódio que marcaria sua vida, Maria Gabriela era descrita pela família como alegre, extrovertida e trabalhadora. Casada com Devair Alves Ferreira, ela ajudava no dia a dia do ferro-velho da família, que funcionava no Setor Aeroporto. O casal tinha uma rotina simples até que, no início de setembro de 1987, um equipamento abandonado em uma antiga clínica de radioterapia chegou ao local. Sem saber do que se tratava, catadores desmontaram o aparelho e venderam peças para o ferro-velho. Dentro dele havia uma cápsula que emitia um pó brilhante, algo que despertou curiosidade e levou várias pessoas a tocá-lo Nos dias seguintes, Maria Gabriela, o marido e outras pessoas próximas, como familiares e vizinhos, começaram a apresentar sintomas como náuseas, vômitos, irritações na pele e fraqueza. A decisão que mudou tudo Foi Maria Gabriela quem percebeu que o material recém-chegado poderia estar ligado às doenças. Primeiro, tentou afastá-lo da própria casa, enviando-o para um centro de recicláveis junto com outros materiais. Mas, quando percebeu que os sintomas continuavam, decidiu voltar ao local, resgatar a peça e procurar ajuda. A morte repentina de um passarinho da família, poucas horas depois de o objeto entrar na casa, reforçou a desconfiança de que algo estava errado. Além disso, pessoas ao seu redor continuaram adoecendo, como conta Odesson Alves Ferreira, irmão de Devair, em entrevista à repórter Letícia Graziely, do g1 Goiás. “O produto chegou no dia 18 de setembro e as pessoas começaram a adoecer. Um pássaro de gaiola que o casal tinha morreu na mesma noite que a peça adentrou a residência. Ligando uma coisa à outra, uma vizinha também começou a comentar sobre a possibilidade de aquilo ser o causador. No dia 26, a Maria Gabriela mandou aquilo junto com outros recicláveis para um depósito, mas, como as pessoas ao seu redor continuavam adoecendo, no dia 28, ela e um funcionário foram ao depósito, resgataram a peça e levaram para a Vigilância Sanitária. Dois dias depois, vieram a saber ser o césio-137”, relembrou o cunhado. No dia 28 de setembro, ela e um funcionário voltaram ao depósito onde o objeto havia sido deixado, recolheram o material e o transportaram de ônibus até a Vigilância Sanitária de Goiânia, sem saber que carregavam material radioativo. A iniciativa antecipou em dias a descoberta científica da contaminação, que só seria confirmada após medições feitas no prédio do órgão de saúde. Segundo especialistas, se ela não tivesse levado o material até ali, o diagnóstico demoraria mais e a radiação teria se espalhado por mais regiões, afetando ainda mais pessoas. A investigação da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) mostrou que, antes da descoberta, vítimas circularam normalmente por diferentes bairros e até chegaram a viajar, multiplicando os pontos de contaminação. Milhares de pessoas foram avaliadas na época do acidente com césio-137 e 129 apresentaram radiação no corpo Goiânia Goiás Reprodução/Cara A tragédia O acidente radiológico começou em 13 de setembro de 1987, quando dois catadores, Roberto dos Santos e Wagner Mota, encontraram o aparelho de radioterapia abandonado e removeram a cápsula de césio-137, que emitia um brilho azul no escuro. A aparência curiosa fez com que várias pessoas manuseassem o pó, sem imaginar os riscos. “As pessoas sentiram náuseas, dor de cabeça, coceiras pelo corpo, escurecimento de pele, vômitos, diarreia. O Devair sentia os dentes amolecidos na gengiva, não sentia cheiro, o paladar não diferenciava o sal do açúcar. Naquela semana não senti nada, mas no oitavo dia minhas mãos estavam irreconhecíveis, inchadas, vermelhas e com muita coceira”, informou Odesson. No total, quatro pessoas morreram oficialmente devido à exposição direta: Maria Gabriela, Leide das Neves, Israel Batista dos Santos e Admilson Alves de Souza. Outras mais de mil pessoas apresentaram sequelas. Além disso, de acordo com a Associação das Vítimas do Césio-137, mais de cem pessoas morreram por causa do acidente, devido a câncer e outros problemas. Consequências A descontaminação produziu cerca de 6 mil toneladas de rejeitos, incluindo roupas, utensílios domésticos e materiais de construção, que hoje estão armazenados em Abadia de Goiás. Após a identificação do material radioativo, equipes de saúde montaram um mutirão de triagem no Estádio Olímpico, onde mais de 100 mil pessoas foram examinadas. Locais inteiros foram isolados, casas demolidas e móveis destruídos. A população afetada conviveu por anos com preconceito, causado pelo medo e pela falta de informação. O acidente também provocou mudanças nacionais no controle de equipamentos com fontes radioativas, obrigando fabricantes a recolherem as cápsulas ao final da vida útil, de acordo com a CNEN. Depósito onde estão enterrados os rejeitos do césio-137, em Abadia de Goiás Sílvio Túlio/G1 Legado e memória Mesmo sem ter testemunhado o impacto de suas decisões, Maria Gabriela deixou um legado reconhecido por especialistas em radioproteção: ela foi a pessoa que permitiu que a tragédia fosse percebida a tempo de conter danos ainda maiores. Hoje, mais de 30 anos depois, o nível de radiação nas áreas afetadas está dentro da normalidade. O acompanhamento dos radioacidentados e descendentes (filhos, netos e bisnetos) segue sendo feito pelo Centro de Assistência ao Radioacidentado (C.A.R.A.), que monitora efeitos tardios da exposição. Em 2024, segundo o órgão, 1.360 pessoas estavam cadastradas. Pessoas em estado grave pela contaminação com o césio-137 partem de Goiás para o Rio de Janeiro Lorisvaldo de Paula/O Popular A história de Maria Gabriela, porém, continua a simbolizar o papel da intuição, da responsabilidade e do senso de cuidado em meio à desinformação e ao caos que marcaram aquele setembro. Uma mulher comum que agiu movida pelo instinto de proteger a família e os vizinhos, e que acabou prevenindo proporções muito maiores de um acidente que mudou a história de um estado. 📱 Veja outras notícias da região no g1 Goiás. VÍDEOS: últimas notícias de Goiás

